terça-feira, abril 05, 2005

Procura-se título

A distância só mata
(a alguns)
quando faltam as palavras
ao se deixar de acreditar
que são sagradas


Antigamente amava-se
em cartas perfumadas
e lacrava-se o amor
para que não se perdesse
ou que mãos gulosas
roubassem as lágrimas
no final de cada frase

Iam cheias de lágrimas
as palavras de então
mas chegavam cristalizadas
no tempo que demoravam
faziam-se pérolas

Olhos ávidos devoraram
as sílabas tónicas
saboreadas nos lábios
o perfume guardado
no bolso do casaco
promessas a manter
vivo o coração
as pernas a tremer
a porta fechada
passos no corredor
uma carta que se esconde
e que se relê
(REPETIDAMENTE)


Hoje ama-se com smileys
coloridos e divertidos
sorriso aqui, beijo acolá
explode o amor em janelinhas
e tudo se diz como se nada fosse
nada é sólido e o ar o que leva
derrete entre duas ou três idas
(À RETRETE)

Não há paciência pra esperar
o amor vai ao lume
um pudim instântaneo
prepardo ao gosto do freguês
Chocolate, baunilha, caramelho
a boca falsamente doce
uma digestão que nem o chega a ser

Eu não sou assim, ainda que o pareça
e todos parecemos iguais
assustadoramente iguais
desapaixonadamente iguais
tristemente cibernêticos

Gosto ainda de afiar o lápis
de cortar a ponta obliquamente
para ficar aguda e cortante
como as palavras que trago presas
e de escrever em papel quadriculado
e se soubesse fazer desenhos
fazia

Os meus desenhos
geométricos
cubos e quadrados
flores sem cor
pássaros em V bem aberto
homens e mulheres
esguios
que se distinguem pelo cabelo
eles nunca o têm
e elas têm sempre muito

Mas para assim amar
precisa-se destinatário
alguém a quem enviar
o nome de todas as plantas
que tenho no jardim
e descrever as horas
que fiquei deitado
numa estação de combóio
a assobiar para me manter
ACORDADO

Ou aquela vez em que saltei
a porta do manicómio
num fato de treino amarelo
que mais parecia uma pijama
e um livro de contos russos
debaixo do braço

Não Não estava louco
nem agora o estou
ainda que todos o digam

E se estiver melhor assim
que seja e esteja louco
LOUCO DE AMOR
Pois bem e que tu estejas
também
se souberes e quiseres
cavar um buraco na terra
e deitar palavras
todas as palavras
as que mais gostarmos
e outras que inventarmos
enquanto esperamos que brotem
de lábios saciados
não em nós nem de nós
mas de figos brutalmente maduros
e cheios de mel

EMANUEL BENTO
NB: Este poema não tem título. Aceitam-se sugestões, ainda que só uma delas verdadeiramente conte...