terça-feira, março 29, 2005

Leitura Pascal

Há um papel aberto na mesa. Branco mas com um nome quase amarelo. Papel-manteiga. As mão desenham com cuidados. Uma beira de flores. A lentidão das mãos para que cada flor saia igual a anterior. É um trabalho moroso. Com uma paciência que só as mulheres a têm.
Falta ainda picar todo o desenho, cada pétala, cada curva da natureza será furada. Segue-se o uma junção tóxica. Anil e petróleo para dar uma nova vida ao desenho.
No pano em que as mãos que o desenharam o vão completar. A agulha numa mão a linha na outra. Entra à primeira. Anos e anos de prática levam à perfeição.
As linhas são pardas e o desenho cobre toda uma mesa. As linhas são pardas e o desenho leva semanas a fazer. As mãos hoje já bordam pouco e os olhos estão cansados.
E assim de faz um bordado. Dia a dia numa cadeira de vimes. Quase sempre em solidão. A ver o dia a passar. Por vezes o telefone toca e a tecidura pára brevemente. Outras vezes batem à porta. É outra cara da mesma geração a querer matar a solidão. Sentam-se, bordam e falam, sobretudo do que passou, mas nunca deixam de olhar em frente.
Sempre me fascinaram as mulheres por isso. Olham sempre em frente, com uma noção progressiva da vida.
Hoje não há conversas dessas. Mas há uma criança de 10 anos a ler OS NOIVOS. Mazzoni em tão tenra idade não deve fazer mal. A mim não me fez (ou terá feito e sou assim por isso mesmo?!)Lê as peripécias de Milão e o amor de Lúcia e Renzo em voz alta, como antigamente. De vez em quando pára e pergunta o que quer dizer uma palavra. Eu respondo. Explico cuidadosamente o que quer dizer. Sei que lhe é impossível ler as quases 600 páginas nestas breves férias pascais. Dei-lhe até ao final do ano lectivo. É melhor levar algum tempo, melhor castigar devagar do que duma vez só.
E quando chegar ao último dia de escola quero que a minha sobrinha acredite que o amor e a felicidade são possíveis, nem que seja nos livros. É isso.
EMANUEL BENTO
NB: Já sei que vão dizer que nenhum ser humano normal "obriga" uma criança de 10 anos a ler uma obra destas. Discordo. Por não lerem nada é que nada sabem...